Mifepristona antes só podia ser fornecida por clínicas, médicos ou correio; medida visa contornar proibições após decisão da Suprema Corte que revogou direito federal ao aborto
Pela primeira vez, as farmácias de varejo, de drogarias de esquina a grandes redes americanas como CVS e Walgreens, poderão oferecer pílulas abortivas nos Estados Unidos, a partir de uma mudança regulatória feita nesta terça-feira pela Agência de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês). A medida pode ampliar significativamente o acesso ao aborto por meio de medicamentos.
Até agora, a mifepristona – a primeira de duas pílulas usadas para fazer aborto com medicamentos – podia ser fornecida apenas por algumas farmácias via correio ou por médicos ou clínicas certificados. Sob as novas regras da FDA, os pacientes ainda precisarão de uma receita médica, mas qualquer farmácia que aceite essas receitas e cumpra alguns outros critérios poderá oferecer as pílulas em suas lojas e por correspondência.
A mudança acontece em um momento em que pílulas abortivas, já usadas em mais da metade de interrupções de gravidez nos EUA, se tornam ainda mais procuradas após a decisão da Suprema Corte do ano passado que revogou o direito federal ao aborto. Com a decisão, coube aos estados americanos regular o tema, e muitos deles, especialmente os governados por republicanos, ativaram ou aprovaram leis que restringem ou proíbem a interrupção voluntária da gravidez.
Nesse contexto, as pílulas se tornam cada vez mais tema de batalhas políticas e legais, o que pode influenciar a decisão de uma farmácia sobre a distribuição ou não do medicamento.
A FDA não emitiu um anúncio oficial, mas planejou atualizar seu site para refletir a decisão. Os dois fabricantes da pílula, Danco Laboratories e GenBioPro, divulgaram declarações dizendo que a agência os informou sobre a medida.
Esta mudança é o último passo dado pelo governo federal para expandir o acesso a pílulas abortivas, diminuindo algumas das restrições aplicadas à mifepristona desde que esta foi aprovada em 2000.
Em dezembro de 2021, a FDA disse que iria suspender permanentemente a exigência de que os pacientes obtenham mifepristona presencialmente de um profissional de saúde, uma ação que abriu caminho para serviços de aborto por telemedicina. Após consultas médicas com pacientes por vídeo, telefone ou questionários on-line, os comprimidos prescritos eram entregues pelo correio.
Na terça-feira, a FDA mudou oficialmente os requisitos regulatórios para a mifepristona, deixando em vigor as duas exigências restantes: os profissionais de saúde precisam ser certificados para mostrar que têm conhecimento e capacidade de indicar abortos a pacientes e os pacientes precisam preencher um formulário de consentimento.
A mifepristona, que bloqueia um hormônio necessário para o desenvolvimento da gravidez, é autorizada pela FDA para ser tomada nas primeiras 10 semanas de gestação, embora muitas clínicas e serviços de telemedicina tenham começado a oferecê-la para casos de até 12 ou 13 semanas de gravidez, uma medida que elas são autorizadas legalmente a indicar porque há evidências científicas de que as pílulas são seguras e eficazes nesse período de tempo.
A segunda droga necessária ao aborto, o misoprostol, nunca teve circulação tão restrita quanto a mifepristona, porque é usada para muitas condições médicas diferentes. Ela sempre foi facilmente obtida em farmácias por meio de um processo comum de receita médica. O misoprostol, que causa contrações que expulsam o tecido da gravidez, é tomado 24 a 48 horas após a mifepristona.
A medida desta terça-feira resulta de um acordo entre a FDA e as empresas que fabricam as pílulas. O acordo foi elaborado em negociações que levaram cerca de um ano e considerou questões como permitir que as farmácias ofereçam os comprimidos nas lojas ou apenas por correspondência e como manter a identidade dos médicos em sigilo para proteger sua privacidade e segurança, segundo pessoas familiarizadas com as discussões.
Ainda não está claro se grandes redes de farmácias e drogarias locais optarão por disponibilizar ou não os comprimidos. As etapas para que as farmácias se tornem certificadas para fornecer mifepristona não são difíceis, mas envolvem alguns requisitos administrativos que vão além do processo que as farmácias usam com a maioria dos outros medicamentos, como designar um funcionário para supervisionar o fornecimento da substância.
Dado o tempo e os recursos necessários para essas medidas, algumas farmácias podem não considerar vantajoso oferecer um medicamento que apenas uma pequena porcentagem de sua clientela pode usar.
Embora as pílulas abortivas possam constituir uma pequena porcentagem das vendas de uma farmácia, elas podem ter um grande impacto em sua imagem. Cálculos sobre a percepção do público e o cenário político altamente polarizado dos EUA também podem influenciar a decisão de uma farmácia.
Em cerca de metade dos estados, as proibições ou restrições ao aborto tornarão ilegal ou muito difícil para as farmácias fornecer pílulas abortivas.
Já nos estados onde o aborto permanece legal, as farmácias podem enfrentar a demanda dos clientes pelo medicamento ou a pressão pública dos defensores dos direitos ao aborto e dos profissionais de saúde. As redes nacionais podem decidir oferecer o medicamento nesses estados, mas não fornecê-lo em suas lojas em estados que proíbem a interrupção de gravidez.
Atualmente, a mifepristona é aprovada apenas para aborto. Mas o remédio também é usado no tratamento de alguns abortos espontâneos, e pode haver pressão para que as farmácias o forneçam também para esse fim. Recentemente, dezenas de grupos, incluindo o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas e a Associação Médica Americana, apresentaram um pedido à FDA para a entidade tomar medidas para tornar mais fácil o uso de mifepristona para abortos espontâneos.
Uma funcionária da Danco, que durante anos foi a única empresa a produzir o medicamento nos EUA, com a marca Mifeprex, disse que a empresa esperava que as farmácias independentes menores fossem as primeiras a distribuir o medicamento e que as cadeias maiores demorassem mais, em parte por causa da logística envolvida no cumprimento dos requisitos.
A funcionária, que falou sob condição de anonimato por causa das preocupações da empresa em relação às ameaças de oponentes ao aborto, disse que um passo complicado do ponto de vista logístico seria implementar a exigência das empresas de que as farmácias mantenham em sigilo os nomes dos profissionais de saúde que prescrevem mifepristona. Uma rede como a CVS não poderá listar o nome de um médico em um banco de dados de toda a empresa, por exemplo, e terá que manter essa informação restrita a cada loja.
Ela previu que os primeiros usuários podem incluir pequenas farmácias que normalmente atendem serviços de saúde universitários, acrescentando que a empresa não esperava um boom nas vendas com a mudança de regra.
— Para algumas pessoas, isso será uma grande melhoria em sua capacidade de acessar a droga e até mesmo considerar isso como uma escolha para si mesmas — disse a funcionária da Danco. —Para outras pessoas, não necessariamente. Talvez eles não queiram entrar em sua pequena farmácia de bairro e prefiram receber pelo correio.