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Qual é o impacto do ‘tempo de tela’ no desenvolvimento infantil?

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Há cinco anos, a França tomou uma decisão e agora os Países Baixos seguem o exemplo. Desde 1º de janeiro, está proibido no país o uso de dispositivos como celulares e tablets nas salas de aula, a menos que sejam necessários para as atividades, por razões médicas ou por alunos com deficiências. A medida visa limitar as distrações nos dias letivos.

Evidentemente, qualquer um poderia fazer um “detox de dispositivos eletrônicos”, mas a dúvida reside no impacto que o tempo de tela tem no desenvolvimento infantil. A Dra. Karen Mansfield, Ph.D., pesquisadora de pós-doutorado em bem-estar de adolescentes na era digital pela Oxford University, no Reino Unido, afirmou: “As evidências definitivamente não são imutáveis. Recentemente, foram publicadas algumas revisões dos efeitos do tempo de tela nas crianças, mas os achados são muito discrepantes.”

A pesquisa mais recente, continuou ela, ainda está em fases iniciais, não tem achados robustos e está repleta de interpretações errôneas.

A Dra. Tiziana Metitieri, Ph.D., neuropsicóloga especializada em cognição, afiliada ao Ospedale Pediatrico Meyer na Itália, compartilha dessas impressões; ela indica que a enorme quantidade de tempo de tela é uma métrica insuficiente para compreender o seu impacto no desenvolvimento cognitivo e psicológico. “Há duas razões principais para isso”. “Em primeiro lugar, porque atualmente as verificações do tempo de tela baseiam-se em dados relatados pelos participantes [das pesquisas], que podem ser super ou subestimados em função do viés de desejabilidade social. Em segundo lugar, porque as experiências digitais diferem em termos de conteúdo, dispositivo, contexto, local de uso e indivíduos envolvidos.”

Os políticos estão com muita pressa?

O relatório mais recente da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sobre uso de tecnologia na educação destacou a correlação entre o uso excessivo de celulares e a redução no desempenho escolar e na estabilidade emocional.

O relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) intitulado “Empowering Young Children in the Digital Age” sugere, com razão, que é necessário melhorar a proteção nos ambientes digitais, combater a exclusão digital e educar pais e professores em favor de práticas digitais seguras.

Contudo, a Dra. Karen esclareceu: “Atualmente, a implementação de políticas está muito à frente das evidências, e há movimentos semelhantes em escolas do Reino Unido e do Canadá para proibir o uso de celulares. Entretanto, não há evidências sobre os benefícios da proibição de celulares em longo prazo. Muitas evidências científicas por trás das políticas da OCDE e da Unesco são de natureza observacional, o que limita ainda mais a interpretação causal em comparação às pesquisas intervencionais”.

Embora a maioria dos governos não exerça práticas restritivas, a Dra. Tiziana observou que “as abordagens são baseadas nas suas respectivas ideologias políticas, muitas vezes usando o pânico moral como um meio de reunir apoio, mostrando o seu compromisso sincero com a defesa contra as invasões da tecnologia digital que arruína as civilizações humanas”.

A Dra. Sakshi Ghai, Ph.D. e colega da Dra. Karen como pesquisadora de pós-doutorado na Oxford University, reiterou as preocupações da Dra. Tiziana: “O tempo de tela como conceito tem limitações, e a recomendação das políticas precisa ser cuidadosa ao extrair percepções a partir de evidências tão limitadas. O que queremos dizer com tempo de tela? Como pode ser claramente definido o tempo gasto em diferentes atividades? Um foco simplista no tempo de tela pode ignorar as nuances e a complexidade do uso das mídias digitais”.

A chave é ‘o quê’ e ‘onde’

Dispositivos eletrônicos com telas podem ser úteis para as crianças, por exemplo quando usados para fins educacionais, seja para participar de uma aula à distância ou para participar de atividades educacionais extracurriculares. No entanto, a Dra. Sakshi enfatizou a importância de identificar o que seria um uso razoável de mídias digitais. “As telas podem auxiliar as crianças desfavorecidas a alcançar resultados educacionais positivos, especialmente as que apresentam dificuldades de aprendizagem”, afirmou ela. “Usar as mídias para interagir com outras crianças também pode ajudar as crianças racialmente diversas ou da comunidade LGBTQIA+ a criarem relações sociais positivas. Isso reitera que é essencial encontrar o equilíbrio que permita às crianças colher os benefícios da tecnologia digital, salvaguardando ao mesmo tempo sua saúde mental, física e social.”

Por outro lado, a Dra. Tiziana explicou que há evidências de que a exposição passiva a conteúdos educacionais não necessariamente leva a benefícios no crescimento. “O ponto-chave é o ambiente relacional em que essas experiências digitais ocorrem”, frisou ela.

Esforços anteriores para determinar parâmetros de referência para o uso e o tempo de tela, centrando-se na relação entre o histórico de uso de tela e o bem-estar mental atual, ignoraram a natureza da interação digital e o pano de fundo social e tecnológico. “Os efeitos do tempo de tela nas crianças são uma área de pesquisa em constante mudança e em rápido desenvolvimento, e foi demonstrado que outros fatores contextuais tem maior impacto na saúde mental”, explicou ela.

As proibições escolares são muito restritivas?

A implementação de políticas nacionais que garantam uma mudança dramática na forma como abordamos atividades que se tornaram instintivas, como a utilização de um celular, é profundamente difícil, especialmente porque as evidências são inconclusivas e inconsistentes. “Em longo prazo, os efeitos dos diferentes tipos de conteúdos digitais na aprendizagem das crianças ainda não estão claros, e a maior parte da pesquisa relacionada com educação até agora foi realizada com estudantes universitários”, disse a Dra. Karen.

Para educadores e pais preocupados, a Dra. Tiziana desaconselhou abordagens excessivamente restritivas. “As crianças e os adolescentes podem encontrar formas de contornar as restrições em casa e na escola, o que significa que uma abordagem excessivamente restritiva tem eficácia limitada”, reforçou ela. “A melhor forma de se adaptar às mudanças que acontecem na educação, nos relacionamentos, no trabalho e no lazer é uma combinação de experiências fora do mundo virtual e educação digital.”

Espelhando a perspectiva da Dra. Tiziana, a Dra. Karen sugeriu: “Restringir o uso de celulares e outros dispositivos pessoais é um método para reduzir a distração, mas, em última análise, as crianças precisarão aprender a otimizar seu uso de dispositivos digitais”.

Relatos recentes da mídia dos Países Baixos citaram consultorias do neuropsiquiatra Dr. Theo Compernolle, Ph.D., aos ministros do governo, nas quais ele comparou os padrões atuais de uso de celulares pelas crianças a um vício e sugeriu que tais hábitos podem prejudicar o desenvolvimento do córtex pré-frontal. Entretanto, a Dra. Karen referiu que “não há evidências que sustentem esta afirmação”. Embora reconheça os potenciais benefícios, em curto prazo, de uma proibição da exposição à tela no aumento da concentração na sala de aula, ela observou que “um estudo testou diretamente esta hipótese e não encontrou associação entre o uso das redes sociais e o desenvolvimento do cérebro, o que significa que quaisquer alegações de efeitos em longo prazo permanecem puramente especulativas”.

A questão do tempo de exposição das crianças à tela é complexa. Compreender o conteúdo e o contexto da exposição, educar pais e professores e integrar experiências digitais com atividades fora do mundo virtual parecem ser o caminho a seguir. Embora os governos enfrentem as complexidades do manejo deste desafio moderno, o equilíbrio entre o envolvimento digital e o desenvolvimento cognitivo continua a ser um tema crítico para a pesquisa e para a elaboração de políticas fundamentadas. A Dra. Tiziana resumiu: “Como membros adultos da sociedade digital, é importante aprendermos a utilizar as plataformas on-line de modo eficaz antes de compartilharmos as nossas experiências e preocupações sobre o mundo on-line com crianças e adolescentes”.

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