Ação foi protocolada na segunda (5) e detalhada nesta terça (6). Procuradores ouviram 57 profissionais e reuniram 37 mil documentos. Segundo a denúncia, empresa permitiu que médicos trabalhassem infectados, não exigiu vacina nem uso de máscara, ordenou que médicos prescrevessem remédios ineficazes e praticou assédio moral. Prevent disse não poder se manifestar ‘porque sequer conhece a ação’.
Após quase dois anos e meio de investigação, o Ministério Público ajuizou uma ação na Justiça do Trabalho de São Paulo contra a operadora de planos de saúde Prevent Senior em função de uma série de irregularidades que, segundo os promotores e procuradores, foram praticadas pela empresa durante a pandemia de Covid-19.
Os investigadores sustentam que as acusações feitas por médicos que trabalharam na companhia, além de pacientes e familiares, se confirmaram, e agora cobram uma indenização de R$ 940 milhões por dano moral coletivo – o que representa 10% do faturamento líquido das empresas entre 2020 e 2021, período das irregularidades.
A Ação Civil Pública foi produzida de forma conjunta pelo MPT (Ministério Público do Trabalho), MP-SP (Ministério Público de São Paulo) e MPF (Ministério Público Federal).
Procurada, a Prevent Senior disse, por meio de nota, que “não pode se manifestar porque sequer conhece a ação”.
“A Prevent Senior atende as melhores práticas em todos os seguimentos que atua, o que ficará reconhecido ao fim do processo.”
A decisão pela judicialização ocorreu depois que a operadora de saúde se recusou a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo MPT, em que a empresa se comprometeria a corrigir falhas após irregularidades encontradas na área trabalhista durante a pandemia da Covid-19.
Os procuradores ouviram 57 médicos, enfermeiros e outros profissionais que trabalhavam na Prevent. Também reuniram 37 mil documentos, como protocolos médicos, prontuários de pacientes, conversas de aplicativos de mensagens da direção da companhia com os subordinados e laudos periciais, entre outros documentos.
A ação foi protocolada na Justiça do Trabalho na segunda-feira (5) e detalhada nesta terça-feira (6).
A conclusão dos investigadores, em síntese, é que a direção da companhia:
- Permitiu e incentivou que profissionais trabalhassem infectados pelo coronavírus nas unidades do grupo;
- Não exigiu que seus profissionais de saúde se vacinassem contra a Covid-19;
- Só passou a exigir o uso de máscaras em novembro de 2020;
- Realizou experimentos de medicações sem aprovação dos órgãos de pesquisa, reduzindo pacientes à condição de “cobaias”;
- Praticou assédio moral contra os médicos, forçando-os a prescrever medicamentos ineficazes, entre eles os do “kit covid”, ou a realizar outros tratamentos experimentais;
- Ordenou a prescrição de medicamentos ineficazes mesmo sem a confirmação do vírus da Covid-19 nos pacientes.
São alvos na ação os quatro donos da Prevent Senior (Eduardo Parrillo, Fernando Parrillo e Andrea Parrillo e Maria Aparecida Fagundes Parillo) e seis empresas do mesmo grupo.
“O conjunto probatório aponta para uma conduta dolosa e deliberada no sentido de colocar negócios e interesses econômicos acima da proteção da saúde e da vida de milhares ou até milhões de pessoas”, afirmam os promotores e procuradores.
As primeiras suspeitas contra a Prevent Senior surgiram em 2021 e foram reveladas, em primeira mão, pela Globonews.
A companhia foi investigada na CPI da Covid no Senado e também em uma CPI na Câmara Municipal de São Paulo. Há ainda uma investigação criminal em andamento no Ministério Público de São Paulo e sindicâncias em aberto no Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo).
A ANS (Agência Nacional de Saúde) também identificou irregularidades e aplicou três multas ao convênio. A maior delas, de R$ 444 mil, por não ofertar o termo de consentimento de pacientes que foram atendidos nas unidades do grupo e receberam o kit covid. A ANS ainda aplicou duas multas à Prevent Senior, que somam R$ 175 mil, por restringir a autonomia dos médicos.
Trabalhadores infectados
Os investigadores cruzaram dados das escalas de trabalho de cerca de 27 mil profissionais da Prevent Senior, de janeiro de 2020 a dezembro de 2021, com os resultados de testes de Covid-19 fornecidos pela Secretaria da Saúde do estado.
A conclusão é que 9.654 profissionais trabalharam dentro do prazo que deveriam estar afastados, conforme as orientações das autoridades sanitárias.
Segundo o MPT:
- Ao menos 2.828 profissionais trabalharam infectados com Covid nos dois dias seguintes à confirmação;
- Ao menos 3.147 profissionais trabalharam infectados nos sete dias seguintes à confirmação;
- Ao menos 3.679 profissionais trabalharam infectados nos 14 dias seguintes à confirmação.
Máscaras
Os investigadores afirmam ainda que a operadora só tornou obrigatório o uso de máscaras em novembro de 2020, nove meses depois do início da pandemia.
“Houve a proibição, no início da pandemia de Covid-19, do uso de máscaras pelos trabalhadores. Posteriormente, foi permitido somente aos profissionais que faziam manuseio de vias aéreas e que permaneciam na UTI. Apenas em novembro de 2020 passou a ser obrigatório o uso de máscaras. Portanto, descumpriu-se todo o arcabouço normativo que obriga a manter à disposição dos trabalhadores os EPI em número suficiente.”
”Cobaias”
A investigação sustenta que a Prevent Sênior não submeteu aos órgãos competentes, como a Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), estudos com medicamentos como a cloroquina. Essa suspeita foi objeto de investigação do MPF, já 2ue a Conep é um órgão do governo federal.
“Um ser humano que participa de uma pesquisa clínica, sem qualquer proteção ética, não passa de um objeto de estudo, sem direitos da personalidade: uma ‘cobaia humana’. A própria ideia de ‘cobaia humana’ causa intensa repulsa e indignação na sociedade, porque projeta a associação do ser humano a um rato de laboratório, indicando o rebaixamento do ser humano ao negar-lhe a condição humana.”
Na ação, os investigadores afirmam que as provas obtidas demonstram ao menos 12 irregularidades:
- Ausência de afastamento das atividades dos profissionais que estavam com suspeita ou confirmação de Covid-19;
- Afastamentos por período inferior a 14 dias, período preconizado pelas autoridades sanitárias;
- Afastamentos tardios, muitos dias após o início dos sintomas;
- Ausência de vigilância e de afastamento do contactantes;
- Ausência de programa articulado de vacinação dos trabalhadores ou acompanhamento efetivo de seu status vacinal, a despeito de obrigação legal;
- Ausência de investigação epidemiológica;
- Ausência de avaliação por profissional para retorno ao trabalho;
- Retirada de autonomia médica do setor de medicina do trabalho para prescrever períodos de afastamento e tratamento;
- Ministrar medicamentos do Kit Covid, antes mesmo de confirmação da doença;
- Ausência de acompanhamento da saúde dos trabalhadores infectados quanto a sequelas;
- Ausência de medidas de contenção da disseminação do vírus;
- Promoção de estudos e tratamentos experimentais com trabalhadores e pacientes, sem adoção de método científico adequado e sem autorização e validação pelos órgãos competentes
A escolha em propor a ação na Justiça do Trabalho foi tomada porque os investigadores entenderam que os fatos envolvendo as questões trabalhistas são mais específicos. Até a publicação desta reportagem, não havia decisão sobre o pedido de indenização.
Outras frentes de investigação
O Ministério Público Estadual já assinou um TAC com a Prevent Senior em outubro de 2021, se comprometendo a não distribuir mais o “kit Covid”, a suspensão das pesquisas sem autorização dos órgãos responsáveis, e a publicação em jornais de grande circulação da informação de que o estudo realizado em 2020 para testar a eficácia da cloroquina não tem nenhuma validade científica.
A possibilidade de acordo para o pagamento de indenização ainda estava em aberto e fará parte da ação conjunta.
Já o Ministério Público Federal abriu uma investigação sobre a realização de uma pesquisa de forma experimental e sem autorização da Comissão Nacional de Ética e Pesquisa (Conep) com o uso de medicamentos ineficazes para a Covid-19 em pacientes internados ou que buscaram atendimento médico em unidades da Prevent Senior.
Como as pesquisas foram encerradas, a Globonews apurou que o entendimento dentro do MPF é que não seria necessária a assinatura de um TAC exclusivo com o Ministério Público Federal.
O MPT recebeu a manifestação ao que foi concluído pela Procuradoria da República para corroborar com os argumentos que sustentaram a ação por dano moral coletivo na Justiça do Trabalho.
A Promotoria de Saúde Pública do MP-SP também contribuiu com o material coletado na investigação civil contra a operadora.
Apesar de a Polícia Civil ter relatado o inquérito que investigava a atuação da Prevent Senior durante a pandemia de Covid-19 no estado de São Paulo e concluir que a operadora não cometeu atos ilícitos ao usar e recomendar medicamentos sem indicação e eficácia contra a doença, o Ministério Público de São Paulo segue com a investigação na parte criminal.
Os promotores ouviram depoimentos de médicos, pacientes e familiares de pessoas que morreram na pandemia após tratamento de Prevent Senior, e aguardam os laudos dos peritos sobre os prontuários médicos dos denunciantes. A apuração pode ser concluída ainda neste ano.