“Se um dia a gente ficar doente, precisamos apenas rezar para sobreviver ao hospital. O resto a gente tira de letra.” Ouvi essa frase de uma colega médica, horas depois de ter avaliado um paciente de quase noventa anos, internado no isolamento por suspeita de covid. A imensa frustração dela vinha do número bizarro de condutas insensatas, apressadas e até completamente erradas que eram evidentes no caso, descortinando a falta de discernimento da equipe de saúde que vinha prestando cuidados a ele. Não cabe aqui descrevê-las uma a uma ou fazer uma denúncia pública de um caso específico, porque a profundidade do episódio descrito é muito maior. De maneira geral, a medicina que vemos nos hospitais de hoje é mais ou menos isso: um emaranhado de avaliações afobadas, pautadas por pouco ou nenhum raciocínio clínico, nas quais a negligência ao contexto individual das pessoas é patente e onde proliferam pareceres de especialistas que se esmeram para enxergar apenas a parte que lhes cabe (quando muito). Mesmo quando há um médico específico responsável pelo caso, poucas vezes se vê neste papel um profissional disposto e capaz de alinhavar todas as pontas, construir diagnósticos coerentes, definir estratégias sensatas e, como um bônus, fazer tudo isso em concordância com os valores e expectativas do paciente e da sua família. Na prática, são muitas as partes que nunca resultam num todo.
Delineando o problema
Talvez seja difícil compreender a magnitude de um problema assim. Aos poucos, nos acostumamos a esse novo normal da medicina, a ponto de nem sequer percebermos que algo muito errado acontece nos corredores dos nossos hospitais. Nós aprendemos a restringir nossas avaliações, com menos perguntas, quase nenhum exame físico e apenas um esboço de raciocínio clínico. Também aprendemos a solicitar exames, muitos deles, principalmente se estiverem arrolados em algum protocolo institucional. Depois, desaprendemos a interpretar estes exames, que acabam respondendo a perguntas que nunca fizemos e que não interessam aos nossos pacientes. E, por fim, passamos a encontrar mais satisfação em ter uma prescrição complexa no computador do que em enxergar o alívio nos olhos de quem cuidamos. O amor pelas prescrições/condutas/exames chega a ser tão profundo que já vi colegas indo embora da enfermaria após entregar a papelada à enfermagem, esquecendo-se completamente de entrar no quarto para ver o paciente. Pobres de nós, que nos contentamos mais em propor condutas do que em ajudar pessoas. E isso é, sim, uma catástrofe.
A velocidade e a pressa
As insanidades hospitalares estão por todos os cantos. As salas de emergência estão abarrotadas de pacientes cujo diagnóstico se baseou em tão pouca informação que poderíamos supor que o médico foi quase um vidente ao fazê-lo. E é triste constatar que diagnósticos pouco criteriosos, incoerentes e até disparatados vão sendo registrados nos prontuários sem jamais serem questionados, partindo-se do princípio de que o que está escrito está sempre correto. Vai se formando uma cadeia infinita de outros diagnósticos e condutas que se sustentam em premissas errôneas, imprudentes e até mesmo mentirosas (não é raro encontrar descrições de exames físicos que nunca foram feitos, sinais vitais que foram copiados de outro profissional ou informações que o paciente jamais forneceu). Nenhum registro é averiguado, nunca se dá um passo atrás para considerar a possibilidade de um erro, um engano, uma falha. O cuidado ao paciente parece seguir um fluxo com vida própria, no qual basta acatar o que estiver escrito ou preconizado (e salve-se quem puder). Mesmo assim seguimos, alguns por preguiça e outros por ilusão, acreditando que no final tudo vai dar certo. Nem sempre vai. Se formos honestos, “dar tudo certo” é um desfecho cada vez mais improvável, e talvez tenhamos mesmo que contar com a sorte para sobreviver aos hospitais. Precisamos assumir nossa responsabilidade no processo.
Talvez a face mais cruel da tempestade caótica que se formou nos hospitais seja o olhar conformado dos pacientes para tudo isso. Perplexos, muitos nem sequer conseguem questionar o cuidado insuficiente que recebem, tamanha a complexidade das rotinas hospitalares. Criamos protocolos para absolutamente tudo, com parâmetros para mensurar nossa capacidade de cumpri-los e acreditações que beiram a insanidade, tudo em nome de aumentar a segurança e a eficácia da assistência às pessoas. Ao nos assistirem seguros e apressados, nos esforçando para cumprir todos os passos que nos são exigidos na rotina hospitalar, nossos pacientes se assombram com nossa capacidade impressionante de compreender tantas coisas complexas. Eles se constrangem por terem a sensação de estar em meio a uma verdadeira anarquia e, resilientes, confiam que sabemos o que estamos fazendo. Será que sabemos? Não é preciso um olhar tão perspicaz para perceber que as mesmas pessoas que deveriam se beneficiar das nossas estratégias padronizadas acabam perdidas em meio ao caos hospitalar, transformando-se em números e estatísticas. Pior: o (des)cuidado que recebem pode colocá-las em risco real de piorar sua saúde e – isso será doloroso de ouvir – matá-las mais rápido.
A utopia e a ilusão da tecnologia
Às vezes me pego pensando se houve um momento específico em que passamos a esquecer que os hospitais foram criados para que pudéssemos oferecer um cuidado mais abrangente, e não menos individual. Eram uma forma de concentrar as pessoas doentes num lugar só para que todas pudessem receber tudo de que precisassem, para otimizar os recursos humanos e os insumos e, principalmente, para que os profissionais da saúde pudessem partilhar seus aprendizados e acessar situações clínicas mais diversas. Em última instância, a alocação de pacientes nos hospitais permitia mais tempo para que os profissionais da saúde lhes prestassem cuidados, pensassem sobre seus casos, trocassem experiências entre si, observassem de perto a eficácia (ou fracasso) de suas condutas e, por fim, se tornassem profissionais mais capacitados. O que fizemos foi transformar os hospitais em templos tecnológicos, nos quais terceirizamos nossa capacidade de compreender cada caso para que o sistema se encarregue de resolver tudo. Delegamos a individualidade das pessoas aos fluxogramas hospitalares, não deixando a elas outra opção que não seja adequarem-se ao sistema. É assim que temos pacientes amargando horas infinitas de jejum para exames que “só puderam ser marcados todos num dia só”, ou aguardando horas para receberem um analgésico para suas dores excruciantes “porque é necessário preencher uma requisição especial para pegar a medicação na farmácia e a pessoa que faz isso está em horário de almoço”. Administramos medicações desnecessárias porque a prescrição “foi puxada do dia anterior e o médico não viu que essa medicação já tinha sido suspensa”. Negligenciamos os sinais de uma flebite porque “não tem como isso acontecer tão cedo, o acesso venoso foi colocado há apenas dois dias, e é para durar cinco”. Seduzidos que estamos por tudo o que o sistema hospitalar nos oferece, esquecemos que ele só faz sentido se nos mantivermos no controle, avaliando cada situação com o melhor computador de que dispomos para cuidar das pessoas: nossos cérebros (de preferência, com alguns aplicativos adicionais como empatia, interesse, humildade, compaixão). Ao abrirmos mão da nossa capacidade de raciocinar, nos aproximamos dos chimpanzés (exceto pelo fato de que os chimpanzés ainda demonstram alguma disposição para cuidar de seus companheiros, catando-lhes os piolhos). Os hospitais ofereciam cuidado, hoje vendem serviços. Pensando bem, há situações tão bizarras que talvez os chimpanzés fizessem melhor que nós…
O silêncio
A boa notícia é que hospitais, por mais que possa parecer, não têm vida própria. Não são dotados de uma inteligência suprema que domina os cérebros dos profissionais da saúde e os priva do livre arbítrio e da capacidade de pensar. Esse papel é humano. É de todos nós. Resistir ao impulso de delegar ao outro a responsabilidade que nos foi concedida ao nos formarmos profissionalmente é não apenas uma atitude nobre e admirável: é o porto seguro para que o caos não atinja a nós mesmos. É sempre bom lembrar que, em algum momento, todos nós estaremos do lado de lá, debaixo dos lençóis de um leito hospitalar, olhando os colegas médicos, enfermeiros e tantos outros. Nós nos veremos assustados e perplexos com a falta de comunicação, os discursos desencontrados, a coleta de exames diários de utilidade questionável, a falta de um planejamento objetivo e claro, a escassez de atenção, o barulho contínuo , e a falta de sentido em tudo isso. Profissionais da saúde que somos, o caos nos parecerá ainda mais caótico, e é provável que nos passe pela cabeça que tudo o que gostaríamos era ter apenas um médico que fosse capaz de conversar conosco por 15 minutos, que tocasse nossos corpos adoentados, explicasse seu raciocínio e o motivos de suas condutas, e se despedisse com um plano em andamento (e um sorriso, se não for pedir muito). Esse mínimo provavelmente bastaria para evitar riscos desnecessários, excessos e, claro, muita angústia. E talvez permitisse que nossas chances de sobreviver ao hospital fossem – quem sabe? – um pouco menos assustadoras. Ah! Em tempo: esse médico é justamente o que cada um de nós ainda pode ser.
Ana Lucia Coradazzi: Médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, com residência médica em Oncologia Clínica e pós-graduada em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da sua vida. Atualmente é responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. É autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio. Seu livro mais recente, “De Mãos Dadas” propõe um novo conceito, Slow Oncology – a Oncologia sem Pressa, e é inspirado em uma das principais obras da Slow Medicine, “My mother Your Mother“, de Dennis McCullough, geriatra americano.
Por Ana Lucia Coradazzi