Por Guilherme Hummel – Coordenador Científico da Hospitalar Hub
Você está preparado para morrer por falta de diagnóstico? Provavelmente sim. Mas estaria preparado para morrer por excesso deles? Em um paradoxo cada vez mais real, a medicina contemporânea enfrenta a transição do subdiagnóstico para o hiperdiagnóstico — uma era em que se sabe muito, mas se faz pouco. A ascensão das inteligências artificiais (IAs) na área da saúde inaugura um cenário inédito: o da inflação diagnóstica diante de um sistema de saúde cronicamente hipoassistido.
Segundo dados globais, 47% da população mundial ainda não tem acesso a exames diagnósticos básicos. No entanto, esse mesmo cenário está sendo transformado pela incorporação acelerada de IAs médicas — com mais de 500 algoritmos aprovados pela FDA, 75% voltados para radiologia diagnóstica. A IA promete detecção precoce, medicina personalizada e intervenções mais eficazes. Mas o que acontece quando o número de diagnósticos ultrapassa, com folga, a capacidade assistencial dos sistemas de saúde?
A Era da Superdetecção
Casos reais e recentes demonstram o poder dessas ferramentas:
- O uso de redes neurais para prever resistência antimicrobiana com precisão;
- A análise de imagens oncológicas por IA, antecipando respostas terapêuticas;
- Diagnósticos de DPOC com IA em cinco minutos, substituindo a espirometria;
- Biópsias líquidas que identificam mutações genéticas em tempo real;
- Plataformas como o MELD Graph detectando epilepsia que escapa aos radiologistas;
- Testes cognitivos como o Pensive-AI detectando demência em menos de 5 minutos.
Estes exemplos evidenciam uma revolução diagnóstica sem precedentes. Mas à medida que o diagnóstico se torna mais rápido, preciso e acessível, emerge uma consequência inevitável: a demanda exponencial por tratamento.
Diagnóstico sem tratamento é só ansiedade
Diagnosticar é abrir portas. Mas se não há recursos, médicos, leitos ou infraestrutura suficientes para lidar com o volume de novas descobertas clínicas, o que se ganha em eficiência se perde em impacto prático. Como ressalta o autor, “cada diagnóstico adicional gera uma demanda subsequente de recursos terapêuticos”.
Um exemplo emblemático vem do Reino Unido. Em 2024, o governo britânico investiu £15,5 milhões em IA para acelerar a radioterapia. No entanto, em 2025, parte do financiamento foi cortada. Estima-se que isso acrescentará 500 mil dias às filas de espera. Um paradoxo cruel: a IA acelera a entrada dos pacientes no sistema, mas a capacidade de atendimento permanece a mesma — ou até diminui.
Techtopia versus Tecnotopia
Essa crise emergente nos convida a distinguir dois futuros possíveis. Um é a Techtopia: um mundo tecnologicamente brilhante, mas incapaz de sustentar a própria inovação. A outra é a Tecnotopia: um progresso real, onde a tecnologia se integra à capacidade real dos sistemas de saúde, promovendo acesso, assistência e efetividade.
A IA diagnóstica, portanto, não pode ser apenas um “bibelô high-tech” em hospitais. Deve ser compreendida como estratégia — não vitrine. Sem o planejamento correspondente em oferta assistencial, a tecnologia corre o risco de ser mais um fator de pressão sobre redes já saturadas.
E se todos forem diagnosticados?
A cena descrita pelo autor, em que milhões de pessoas são vacinadas e diagnosticadas simultaneamente com apenas uma coleta de saliva e fluido nasal, não é ficção científica. A IA pode identificar dezenas de doenças em minutos, entregando laudos em tempo real. Mas quem atenderá esse novo paciente, agora sabidamente doente? A IA desobstrui a porta de entrada, mas congestiona a porta da assistência.
Assim, os sistemas de saúde enfrentam uma hipótese incômoda: a IA, ao funcionar perfeitamente no diagnóstico, escancara as fragilidades crônicas da assistência. O risco não é que faltem diagnósticos, mas que sobrem pacientes sem tratamento.
Planejamento é mandatório
Para evitar esse colapso paradoxal, será preciso:
- Expandir drasticamente a capacidade assistencial: mais médicos, mais leitos, mais centros cirúrgicos.
- Automatizar não apenas o diagnóstico, mas também o cuidado: robôs cirúrgicos, triagens automatizadas, assistentes virtuais de acompanhamento.
- Reorganizar fluxos assistenciais com base em IA: usando LLMs (Large Language Models) e agentes autônomos para coordenar jornadas de cuidado.
- Revisar prioridades clínicas: estabelecendo novos critérios de acesso à terapia conforme o impacto e risco real.
O alerta é claro: a falha em planejar o futuro da assistência pode transformar a IA diagnóstica de solução em problema.
Como conclui o autor, os sistemas de saúde insistem em cuidar de um mundo que já não existe. O novo mundo é hiperdiagnosticado. Mas ainda carece de um plano assistencial à altura da nova inteligência que o habita.